Samuel

2 comentários
Pela vidraça ela conseguiu ver que ele estava lá. Sempre estava, todos os dias, do começo da manhã até o início da noite

Samuel perdera o filho haviam mais de vinte anos, mas desde então se dirigia ao mesmo lugar e lá ficava, quase sem se mover, como que esperando que um milagre trouxesse seu garoto de volta. Com o tempo as pessoas se acostumaram com sua presença ali, na grande entrada da mina, e desviavam dele, balbuciando tímidos cumprimentos, alguns tocando levemente em seus ombros, e seguindo seus caminhos de cabeças baixas partilhando com aquele pai desesperado toda a dor que pode haver no mundo.

Ninguém em toda a montanha era capaz de dizer ao certo quando fora a última vez que ouvira Samuel  pronunciar uma palavra sequer. Alguns diziam que ele não falara mais nada desde a perda do filho, outros juravam que ouviram, pouco tempo depois, ele gritar alucinado para dentro das profundezas da mina o nome de seu "pequeno". O fato é que ele permanecia todos os dias ali, tal qual uma estátua, como um rascunho humano, à espera de alguém que sabiam que não voltaria mais.

No fim da tarde, já quase noite, viam-no se dirigir para sua casa, na Alameda do Conde. Ao entrar pela porta, era como se desaparecesse para o mundo. Nenhuma vela era acesa, nada se ouvia. Pouco a pouco a névoa descansava sobre a terra, e não se falava ou se pensava mais em Samuel. Era apenas mais um triste entardecer para aquele rascunho de homem.

Ele

6 comentários
Não se lembrava das madrugadas terem sido tão frias um dia, até mesmo a neblina parecia enrijecida, e os ventos sequer assobiavam.

Olhou para o céu e viu a Lua, redonda, se insinuar timidamente com seu brilho através do espesso véu.

O silêncio reinava noite a dentro, nenhum som de coisa alguma. Por um momento não ouviu sua própria respiração e se assustou. Havia coisas com as quais não conseguia se acostumar. Mas não era importante. Ouvir ou não, estar presente ou não. Nada fazia diferença.

No final, ele pensou, o que importa é que tudo estava como sempre estivera, e era bom que estivesse assim.

No entanto, ele bem sabia, estava pronto para mudar.

Alameda do Conde

4 comentários
Há milênios ela estava ali, porém os homens que chegaram vários séculos depois acreditavam que a haviam construído. Até deram um nome a ela. Por mais ridículo que pudesse parecer, chamavam seus tortuosos caminhos de alameda, e, apesar de precisarem dela mais do que de qualquer outra, já que, se tinham de subir ou descer tinham de passar por ela, teimavam em maltratá-la, em esculpíila, em deixar que seus dejetos corressem por ela livremente (pelo menos até que Simon Santarot, um velhinho estranho, instalara as tubulações de saneamento básico), e em banhá-la de sangue depois das brigas mortais que volta e meia aconteciam. Não que ela achasse isso ruim. Não é agradável sustentar o peso de uma raça inútil que se acha dona do mundo. Quando um se vai mais cedo é um peso a menos para sustentar.

Mas não havia opção.

Então era ficar ali, esperando o dia em que a névoa, o frio e o isolamento os consumisse. Isso já acontecera uma vez, com uma tribo qualquer. Por que, então, não aconteceria de novo?

Era esperar. Ao contrário de todos os outros, ela não tinha pressa. Afinal, onde poderia ir?

Soncina

2 comentários
Soncina, uma velha senhora, levantava com dificuldade de sua cama. Há dias não dormia bem, justo ela que estava velha, morava sozinha e precisava descansar o máximo de tempo possível para que pudesse dar conta de seus afazeres no dia seguinte. Não queria que pensassem que ela era uma mulher sebosa. Nunca o fora, não seria agora, na velhice, que deixaria que a insultassem.

A cama velha rangia a cada movimento, os cobertores estavam jogados aos seus pés, com uma das pontas no chão, resultado de seu movimento intuitivo de se livrar deles para se por de pé. Tateou com os pés em busca de suas sapatilhas que sempre ficavam no ponto onde bastasse ela tocar no chão e não encostaria no piso frio, mas no forro de cortiça da sapatilha.

Calçou, se levantou com um pequeno impulso dos braços contra a cama e apanhou um toco de vela num criado-mudo bambo. Acendeu a vela com dificuldade depois de riscar um palito de fósforo na parede de pedra centenária. A fraca luz da chama iluminou o pequeno e pobre quarto, a cozinha ficava logo ao lado, mas ela se sentia fraca e daria qualquer coisa para não ter que ir até lá, mas a sede era torturante, e sentia sua garganta arder, então dispôs-se a ir rápido, quanto antes voltasse para a cama melhor, dormiria mais.

"Um copo ao lado da cama", pensava Soncina aborrecida, "nem pensar, não sei onde aquele doutor estava com a cabeça. Como vou deixar um copo ao lado da cama a noite toda, e se um rato cismar em beber dele? Ou uma barata? Aquele doutor é estranho, e além do mais não é um nativo, não é filho da pedra. E se fosse bom médico não teria acontecido nada do que aconteceu. Nada."

Com a visão embaçada, em parte pela idade, em parte pela teimosia em não usar os óculos que o doutor indicara, e ainda em parte pelo sono mal dormido, Soncina ia em direção a cozinha se apoiando nas paredes, arrastando as sapatilhas de cortiça no piso frio, vagarosamente, até que parou defronte a pia e se serviu da água. O silêncio era tão grande que ela ouviu o líquido bater no fundo do estômago vazio. Soncina não tinha comido nada aquela noite, estivera cansada demais para cozinhar.

Pela janela de vidros grossos ela podia ver grande parte da cidade, porém nada estava visível, nem um metro sequer, nem mesmo os lampiões que iluminavam os corredores estreitos que eram as ruas. Tudo estava silencioso, calmo e envolto numa grossa cortina de névoa.

Soncina deixou a caneca de metal velho cair na pia de pedra gasta com um som metálico que lutou para se propagar, mas, pouco depois de sair dos limites da casa, foi abafado pela névoa, então voltou em direção ao seu quarto. "Tudo está como sempre esteve", pensou Soncina, "e é bom que esteja assim".

Related Posts with Thumbnails