Apagão

0 comentários
As luzes das estufas piscaram três vezes antes que se apagassem de vez. Não demorou muito e um alarme soou, indicando o problema, e pessoas de todos os cantos saíram de suas casas apressados, sabendo - e temendo - o que estava acontecendo. O que poderiam fazer se a estufa falhasse? Eram aquelas luzes que, acesas mesmo durante o dia, e em potência máxima à noite, garantiam que hortaliças fossem produzidas mesmo no clima rigoroso da montanha, e inclusive nos meses de inverno.

Alguma coisa teria de ser feita, e logo.

Posto médico

2 comentários

O posto de atendimento médico ficava na Alameda do Conde, estrategicamente posicionado na metade da montanha, assim como outros importantes órgãos que cuidavam do bem-estar da comunidade, o que evitava que se tivesse que subir ou descer completamente a montanha em busca de algum atendimento.

Carl Winterblood parou em frente à porta, eram aproximadamente 11 da manhã, e os olhares de todos os moradores ainda o incomodava, mas para isso, pensou ele, o único remédio era o tempo. Pousou sua bagagem no chão de pedra e tateou o bolso a procura da chave.

O fato de terem lhe enviado a chave pelo serviço postal o incomodou um pouco, era quase como se não lhe permitissem recusar o convite, ou, pior, como se soubesse que ele não tinha condições de recusá-lo. E não tinha mesmo.

“Espartano”.

Foi a primeira palavra na qual Carl pensou ao olhar o interior. A recepção era espaçosa, uma sólida construção de pedra e argamassa, com grandes janelas em três paredes que possibilitavam uma boa ventilação do recinto, e algumas poucas cadeiras cobertas com lençóis brancos espalhadas pelo local.

Winterblood deixou a bagagem sobre o balcão de pedra da recepção e olhou melhor ao seu redor. “Não é de todo ruim”, pensou, encaminhando-se para as altas janelas e abrindo suas folhas para o exterior, afim de que o ar morto acumulado por 5 anos finalmente escapasse dali.

Nos fundos da recepção havia um umbral que dava para um corredor, nele, a poucos passos da recepção, haviam duas salas, uma de cada lado. Após uma rápida inspeção, Carl notou que a da esquerda estava desprovida de qualquer tipo de móvel ou equipamento, e a da direita, pouco maior que a anterior, possuía alguns armários, uma grande mesa de madeira e uma cadeira giratória do outro lado, tudo coberto por lençóis. “Este é meu consultório”, pensou, sentindo-se culpado ao ver, logo depois, pendurado na parede atrás da cadeira um diploma emoldurado, pertencente a algum médico anterior que ele não se preocupou em saber quem fora.

Saindo da sala, a direita, havia um grande cômodo que Carl constatou ser a cozinha, e, ao final do corredor, uma pequena porta levava a uma sala com diversos armários vitrine com recipientes como cubas e tubos de ensaio, e um quadro geral com algumas válvulas e registros que o médico adivinhou serem as responsáveis pela iluminação e aquecimento a gás do posto médico. Ao fundo havia uma segunda porta, que Carl logo seguiu para investigar o que era. Ela havia sido escavada na pedra e nela a temperatura era sensivelmente menor que nas outras repartições. Ali se encontravam prateleiras com dezenas de recipientes com substâncias que Carl julgou medicamentosas, apesar de estarem em tal estado que o médico decidiu por descartá-las mais tarde.

Por fim, o corredor virava a esquerda, onde, lado a lado, haviam duas escadas, uma para o pavimento superior, onde ficavam as dependências para internação, quatro ao total, todas com com boa ventilação e dutos de aquecimento; e uma para o subsolo, todo escavado na pedra dura da montnha, onde Carl, não sem um sincero pesar, verificou ficar sua nova casa.

“Que assim seja”.

A Carta

4 comentários

As ruas, desertas, foram as únicas testemunhas daquele pequeno pedaço de papel que, sem direção, única e exclusivamente ao sabor do vento, planava incerto. Assim, ninguém jamais soube de seu conteúdo, a não ser quem a escrevera, que agora estava num lugar de onde não poderia sair tão cedo.

Dizia mais ou menos assim:

Sabe que te amei e sempre vou te amar, mas é difícil suportar ver como as coisas são, como tudo se tornou tão incerto e escuro, e como você mudou tanto.

Ouve um tempo que sonhei em sempre estar com você, dividir cada segundo meu com coisas tuas, em sentir em mim tudo o que pudesse me oferecer, aceitando sem pestanejar. Mas você mudou. Mudou e, de forma alguma posso dizer que admiro a pessoa que se tornou. Nada pode mudar desta forma sem uma explicação, sem um motivo, e você nunca me disse se possuía algum, e sinceramente duvido que eu possa entendê-los, sejam eles quais forem.

Penso numa lagarta, que, repugnante e perigosa, se recolhe em seu casulo para se tornar um ser melhor, que nos encanta com suas cores vivas e a graça de seu voo. Você, ao contrário, passou, de uma boa pessoa, amigável, amorosa e tenaz, a uma fera pronta para ferir, maltratar e humilhar.

Acredite, não era esta a carta que gostaria de escrever-te, mas é a única que nossa atual condição me permite redigir.

Caso mude, um dia, talvez ainda esteja te esperando, mas somente se você ainda for capaz de amar, de ser quem um dia já foi. Mas não pense que espero que este amor seja direcionado à mim.

Terei de ir, levando consigo algo teu, não por desejo meu, mas por imposição de nossa natureza.

Por fim, o pequeno papel amassado encontrou um precipício e se perdeu. Talvez para sempre.

Ted Vernon

2 comentários
O véu formado pela neblina envolvia toda a montanha, ficando mais espesso à medida que se subia por seus caminhos tortuosos rumo ao cume. Ted Vernon, um vigia-noturno de trinta e poucos anos percorria o caminho que trilhava quase todas as noites, montanha acima, direcionando sua lanterna para um lado e o outro, assoprando, às vezes, o apito que trazia nos lábios, avisando aos moradores de bem, àquela hora já deitados e no segundo sono, que estava ali para manter a ordem, e que a mesma seria mantida.

Mesmo tendo nascido na montanha - e sendo seu filho por direito de quatro gerações - não se lembrava de a névoa ser tão espessa e fria naquela época do ano, e nem de carregar o ar com tamanha sensação de desespero, de abandono. Homem feito, crente nas leis que a Religião propunha aos seus fiéis, tratou de afastar tais pensamentos, procurando assoviar uma antiga canção.

Saindo da Alameda do Conde, virou à direita e pegou um caminho estreito, que levava até a face da montanha onde se encontrava a habitação no extremo norte habitável, uma simples casa de troncos, de um cômodo só, e aparentemente abandonada a anos. Passando por ela, Ted não pode deixar de se benzer, e enterrou o pescoço nos ombros para evitar o calafrio que sempre acompanhava uma passagem pelo local. Pouco depois, cerca de vinte ou trinta passos, o vigia chegou até o chamado limite habitável, que terminava abruptamente num despenhadeiro com duas centenas de metros de profundidade.

Tirando um cigarro do bolso interno do blusão, Ted olhou para baixo admirando o mar branco de névoa, que, de cima, parecia compacto ao ponto de poder sustentar uma pessoa, de modo que ela pudesse caminhar tranquilamente pela neblina.

Por um momento Ted divagou em pensamentos, e, então, sentiu algo tocar suas costas, primeiro de leve, depois empurrando-o com força para o precipício. Dois segundos depois e Ted Vernon entendeu que o mar de névoa não o sustentaria.

Carl Winterblood

4 comentários
O novo médico chegara no trem das 9 da manhã, usava um terno marrom e gravata preta, e, como todo forasteiro em uma cidade pequena, imediatamente chamou a atenção de todos na estação. 

Se esforçou para não parecer embaraçado com a situação, e tratou logo de exibir o sorriso mais encantador que se poderia exibir numa situação como aquela, mas de pouco adiantou, pois as pessoas não se animaram a retribuir.

Os moradores mais antigos não gostavam dos forasteiros, achavam que eles não eram merecedores de morar na montanha por não serem filhos dela, ou seja, por não serem filhos de um morador dela, mas Carl Winterblood fora nomeado pelo governador, então não tinha outra escolha a não ser assumir seu posto. Ele sabia que não seria fácil, e imaginava como receberiam - e respeitariam - um médico que ainda não completara 25 anos, e que apenas tivera contato com os pacientes nos tempos de faculdade, supervisionado por um professor.

Pelo que conseguiu apurar na capital, a mais de cinco anos nenhum médico aceitara residir na montanha, pois, afirmavam, era um lugar frio, isolado, e com moradores difíceis de lidar. O último, Louis Bott, abandonara o posto e pedira demissão sem dar maiores detalhes. Mas Carl não tinha escolha: como recém formado, não tinha um tostão sequer para montar um consultório, e tampouco influência para conseguir clinicar juntamente com algum médico renomado da capital.

A montanha era sua única alternativa, e ele estava disposto a encará-la.

Citações

8 comentários
“O poder da palavra pode mudar o mundo”.

Segundo muitos, estas foram as últimas palavras do Reverendo Lossar antes de partir para, segundo o próprio, um mundo melhor.

Aqueles que presenciaram a cena comentaram, tempos depois, que o Reverendo dissera aquilo com uma convicção tão grande que, no momento, acreditaram piamente que bastava uma palavra para mudar o mundo.

Mas qual palavra?

“O pior de se ouvir confissões de um moribundo é que ele pode não ter tempo de concluir o que iria dizer.”

Esta era a opinião de Charles, o vigilante, que estivera presente no momento em que o velho reverendo pronunciara suas últimas palavras. Apesar de ter formulado este pensamento, Charles não era uma pessoa má, pelo contrário, acreditara, como os outros, que uma palavra bastaria para mudar o mundo, mas que palavra? Pelo visto o Reverendo levara o segredo para o túmulo.

“Mais um. E em pleno inverno.”

Scott, o coveiro, não era um fã ardoroso de cavar a terra dura da montanha, ainda mais em pleno inverno. Sendo assim, não conseguiu conter as palavras, e, assustado, ouviu seus lábios a sussurrarem quando foram chamá-lo para providenciar o que fosse necessário para que o Reverendo alcançasse seu sono eterno.

“Quinze anos de azar”

Dissera o mensageiro que fora acordar Scott em sua casa. Homem supersticioso, acreditava que sete anos seriam pouco para tamanha blasfêmia, ainda mais em se tratando de um reverendo. Scott amargaria quinze anos de azar.

E fez o sinal da cruz.

Júlia

5 comentários

O primeiro pensamento que lhe vinha à cabeça era de como tudo, por mais estranho que fosse, era perfeitamente normal.

Se já não tivesse perdido a conta estava ali a pelo menos nove meses, o que era engraçado, pois lembrava o tempo de gestação de uma pessoa comum. Não que ela já tivesse estado grávida, ou que não fosse uma pessoa comum, mas, muitas vezes, os outros faziam com que se sentisse estranha, diferente, e fora do mundo ao qual devia pertencer.

Este era o problema de se morar numa montanha: se não te aceitam, para onde pode ir?

Não que ela não tenha tentado. Anos a fio trabalhou nas estufas, tentando parecer com todo mundo, rir como riam, contar histórias como contavam, viver, simplesmente, como viviam. Mas as cores não ajudavam muito. Sempre as cores. E sua mania de falar sobre elas.

Júlia não entendia como as cores podiam aparecer em lugares tão insólitos. Claro que ela admirava a brancura da neve, o amarelo pálido do sol, e o alegre mar de cores que surgia diante de seus olhos no interior das estufas, mas não conseguia atinar com o por que de uma conversa maldosa ser vermelho vivo, de um sussurro conspirador ser negro, de uma palavra amigável ser branca.

Lembrava-se bem da cor das palavras d’Ele naquela noite. Eram do vermelho mais vivo que já vira, seus olhos marejaram no mesmo instante, e ela soube que algo de muito ruim iria acontecer.

Duas batidas na porta a trouxe de volta à realidade. Pouco depois uma voz, forçosamente agradável, disse:

- Júlia, querida, é hora de tomar seus remédios.

Related Posts with Thumbnails