Apagão
Alguma coisa teria de ser feita, e logo.
Posto médico
O posto de atendimento médico ficava na Alameda do Conde, estrategicamente posicionado na metade da montanha, assim como outros importantes órgãos que cuidavam do bem-estar da comunidade, o que evitava que se tivesse que subir ou descer completamente a montanha em busca de algum atendimento.
Carl Winterblood parou em frente à porta, eram aproximadamente 11 da manhã, e os olhares de todos os moradores ainda o incomodava, mas para isso, pensou ele, o único remédio era o tempo. Pousou sua bagagem no chão de pedra e tateou o bolso a procura da chave.
O fato de terem lhe enviado a chave pelo serviço postal o incomodou um pouco, era quase como se não lhe permitissem recusar o convite, ou, pior, como se soubesse que ele não tinha condições de recusá-lo. E não tinha mesmo.
“Espartano”.
Foi a primeira palavra na qual Carl pensou ao olhar o interior. A recepção era espaçosa, uma sólida construção de pedra e argamassa, com grandes janelas em três paredes que possibilitavam uma boa ventilação do recinto, e algumas poucas cadeiras cobertas com lençóis brancos espalhadas pelo local.
Winterblood deixou a bagagem sobre o balcão de pedra da recepção e olhou melhor ao seu redor. “Não é de todo ruim”, pensou, encaminhando-se para as altas janelas e abrindo suas folhas para o exterior, afim de que o ar morto acumulado por 5 anos finalmente escapasse dali.
Nos fundos da recepção havia um umbral que dava para um corredor, nele, a poucos passos da recepção, haviam duas salas, uma de cada lado. Após uma rápida inspeção, Carl notou que a da esquerda estava desprovida de qualquer tipo de móvel ou equipamento, e a da direita, pouco maior que a anterior, possuía alguns armários, uma grande mesa de madeira e uma cadeira giratória do outro lado, tudo coberto por lençóis. “Este é meu consultório”, pensou, sentindo-se culpado ao ver, logo depois, pendurado na parede atrás da cadeira um diploma emoldurado, pertencente a algum médico anterior que ele não se preocupou em saber quem fora.
Saindo da sala, a direita, havia um grande cômodo que Carl constatou ser a cozinha, e, ao final do corredor, uma pequena porta levava a uma sala com diversos armários vitrine com recipientes como cubas e tubos de ensaio, e um quadro geral com algumas válvulas e registros que o médico adivinhou serem as responsáveis pela iluminação e aquecimento a gás do posto médico. Ao fundo havia uma segunda porta, que Carl logo seguiu para investigar o que era. Ela havia sido escavada na pedra e nela a temperatura era sensivelmente menor que nas outras repartições. Ali se encontravam prateleiras com dezenas de recipientes com substâncias que Carl julgou medicamentosas, apesar de estarem em tal estado que o médico decidiu por descartá-las mais tarde.
Por fim, o corredor virava a esquerda, onde, lado a lado, haviam duas escadas, uma para o pavimento superior, onde ficavam as dependências para internação, quatro ao total, todas com com boa ventilação e dutos de aquecimento; e uma para o subsolo, todo escavado na pedra dura da montnha, onde Carl, não sem um sincero pesar, verificou ficar sua nova casa.
“Que assim seja”.
A Carta
As ruas, desertas, foram as únicas testemunhas daquele pequeno pedaço de papel que, sem direção, única e exclusivamente ao sabor do vento, planava incerto. Assim, ninguém jamais soube de seu conteúdo, a não ser quem a escrevera, que agora estava num lugar de onde não poderia sair tão cedo.
Dizia mais ou menos assim:
Sabe que te amei e sempre vou te amar, mas é difícil suportar ver como as coisas são, como tudo se tornou tão incerto e escuro, e como você mudou tanto.
Ouve um tempo que sonhei em sempre estar com você, dividir cada segundo meu com coisas tuas, em sentir em mim tudo o que pudesse me oferecer, aceitando sem pestanejar. Mas você mudou. Mudou e, de forma alguma posso dizer que admiro a pessoa que se tornou. Nada pode mudar desta forma sem uma explicação, sem um motivo, e você nunca me disse se possuía algum, e sinceramente duvido que eu possa entendê-los, sejam eles quais forem.
Penso numa lagarta, que, repugnante e perigosa, se recolhe em seu casulo para se tornar um ser melhor, que nos encanta com suas cores vivas e a graça de seu voo. Você, ao contrário, passou, de uma boa pessoa, amigável, amorosa e tenaz, a uma fera pronta para ferir, maltratar e humilhar.
Acredite, não era esta a carta que gostaria de escrever-te, mas é a única que nossa atual condição me permite redigir.
Caso mude, um dia, talvez ainda esteja te esperando, mas somente se você ainda for capaz de amar, de ser quem um dia já foi. Mas não pense que espero que este amor seja direcionado à mim.
Terei de ir, levando consigo algo teu, não por desejo meu, mas por imposição de nossa natureza.
Por fim, o pequeno papel amassado encontrou um precipício e se perdeu. Talvez para sempre.
Ted Vernon
Carl Winterblood
Citações
Júlia
O primeiro pensamento que lhe vinha à cabeça era de como tudo, por mais estranho que fosse, era perfeitamente normal.
Se já não tivesse perdido a conta estava ali a pelo menos nove meses, o que era engraçado, pois lembrava o tempo de gestação de uma pessoa comum. Não que ela já tivesse estado grávida, ou que não fosse uma pessoa comum, mas, muitas vezes, os outros faziam com que se sentisse estranha, diferente, e fora do mundo ao qual devia pertencer.
Este era o problema de se morar numa montanha: se não te aceitam, para onde pode ir?
Não que ela não tenha tentado. Anos a fio trabalhou nas estufas, tentando parecer com todo mundo, rir como riam, contar histórias como contavam, viver, simplesmente, como viviam. Mas as cores não ajudavam muito. Sempre as cores. E sua mania de falar sobre elas.
Júlia não entendia como as cores podiam aparecer em lugares tão insólitos. Claro que ela admirava a brancura da neve, o amarelo pálido do sol, e o alegre mar de cores que surgia diante de seus olhos no interior das estufas, mas não conseguia atinar com o por que de uma conversa maldosa ser vermelho vivo, de um sussurro conspirador ser negro, de uma palavra amigável ser branca.
Lembrava-se bem da cor das palavras d’Ele naquela noite. Eram do vermelho mais vivo que já vira, seus olhos marejaram no mesmo instante, e ela soube que algo de muito ruim iria acontecer.
Duas batidas na porta a trouxe de volta à realidade. Pouco depois uma voz, forçosamente agradável, disse:
- Júlia, querida, é hora de tomar seus remédios.